Nem sempre a audição passiva predominou sobre a escuta ativa. Outros momentos de nossa própria cultura ocidental trataram a música como parte integrante da formação de todo ser humano.
Nem sempre tocar um instrumento, cantar ou compor foram atividades restritas a especialistas; ao contrário, em muitos momentos o fazer e o refletir sobre música foram tidos como uma necessidade básica, e isso incluía homens e mulheres comuns, de todas as idades e profissões. Como exemplos, podemos citar a consciência que o mundo grego teve, desde o período pré-socrático, de que todas as proporções geométricas e numéricas presentes na Natureza estariam diretamente relacionadas - e até subordinadas - a estruturas musicais; ou do papel que a música ocupou entre as ciências do quadrivium na Idade Média, ao lado da matemática, da geometria e da astrologia; ou da importância que o canto e o contato artesanal com os instrumentos musicais teve durante o longo período que abarcou o Renascimento, o Barroco e o Classicismo; ou ainda da concepção da música como "essência do mundo", predominante durante todo o Romantismo. Isso para não mencionarmos com mais detalhes a presença da música nos rituais, sejam eles explicitamente religiosos ou não, orientais ou ocidentais, africanos ou americanos.
Como, no entanto, esses outros tempos e lugares articularam níveis de escuta musical?
Foi o músico e filósofo Ricardo Rizek que nos mostrou, certa vez, um famoso trecho da Epístola XIII atribuída ao poeta Dante, onde é mencionado que um texto pode ser lido sucessivamente ou simultaneamente em (até) quatro diferentes níveis, e que esses quatro diferentes níveis poderiam ser representantes tipológicos das inúmeras leituras possíveis de um texto. Se há um grau de subjetividade na leitura de um texto ou na audição musical, se há "uma leitura para cada leitor" e uma "audição para cada ouvinte", para o mundo de Dante, entretanto, essa subjetividade não é absoluta: ela é, por assim dizer, "organizada" pelos quatro níveis. São eles: o nível literal, o moral, o analógico e o anagógico.
Fazendo uma transposição da literatura para a música - o que poderíamos chamar tecnicamente de uma "mudança de tom" -, podemos dizer que o nível literal assemelha-se ao que o pensador francês Jean Piaget chamaria de estágio sensório-motor do desenvolvimento humano: aqui, uma música não é "escutada", mas apenas "ouvida"; ocorre quando a música é recebida passivamente pelo corpo, é a música "que mexe com o corpo da gente", como diz um samba um pouco antigo. Muito da música pop e do rock fundamenta-se sobre esse nível. Toda a música com pulsação marcada, toda a música de dança fundamenta-se sobre esse nível, não importando tanto se vem da Inglaterra ou da Bahia, da Jamaica ou de Viena. Obviamente, basta haver som para "mexer com o corpo", mas certos artistas são especialistas nessa área, o que faz com que essa pulsação básica possa assumir, em alguns casos, formas de grande sofisticação.
O nível moral de Dante pode assemelhar-se ao estágio psico-emocional de Piaget: aqui, não apenas "somos ouvidos" visceralmente pela música, como ocorria no nível anterior, mas passamos a opinar sobre ela. Aqui a música "diz" algo, e nós reagimos a "esse algo". Esse "dizer", esse "despertar emoções", freqüentemente parte da letra de uma canção, mas pode também ser deflagrado pelos misteriosos caminhos através dos quais a música instrumental acessa nossa subjetividade. Muito da canção romântica, das músicas mais lentas, com tears, in heaven or not, sustenta-se sobre esse nível.
Já o nível analógico de Dante pode ser resumidamente apresentado como estrutural-formal: aqui a escuta é mais objetiva, mais técnica. É esse o nível que buscamos acessar através do estudo de música, o nível no qual procuramos entender a forma, perceber recorrências motívicas, buscar a relação entre texto, melodia, harmonia, arranjo e instrumentação, apreender a relação do tema com a improvisação, ou com a variação, ou com o desenvolvimento, atentar para cada nota, para cada timbre, para cada tempo de uma música. Só a ingenuidade, a ignorância ou a má fé podem achar que compreender música pode tirar o prazer em ouvir música: ao contrário, se a obra tiver qualidade, a experiência estética será aprofundada com a compreensão; se, por outro lado, a música for fraca, teremos a oportunidade de desligar o rádio, não comprar o CD e, talvez, sair mais cedo de certos shows. Ninguém precisa se envenenar com música ruim.
Para Dante, no entanto, resta um quarto nível. O nível anagógico não pode ser facilmente comentado sem uma referência mais explícita à filosofia e à mística da Antigüidade e da Idade Média; podemos dizer, no entanto, que ele se manifesta em casos muito especiais, quando a experiência de escuta musical transmite algo fundamental, tão íntimo quanto essencial; algo que, de certa forma, parece que nos transforma definitivamente. Nem todas as pessoas ouvem música com tanta profundidade, e nem todas as músicas podem ser ouvidas assim; ao mesmo tempo, esse nível não pode ser atingido por nenhum "programa regular tradicional de estudos musicais"; só quem viveu a experiência, diz-se, pode saber o que ela significa e no que ela implica. Para Dante, só uma obra que tenha chegado a esse nível pode ser nomeada como uma verdadeira "obra de arte", o que não quer dizer que ela não tenha também os outros três níveis dentro dela.
Cada nível de escuta musical, cada camada de inteligência sonora apreendida, abarca as anteriores.
Se o escutar sobrepõe-se ao ouvir, a conquista anagógica transcende a escuta e passa a "auscultar" o interior das coisas; é isso o que talvez possamos tentar, precariamente, extrair da obscuridade do fragmento número 50 deixado pelo filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso:
"Se não ouvirem simplesmente a mim mas se tiverem auscultado
o lógos, então é um saber (que consiste em ) dizer igual o que diz
o lógos: tudo é um".
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